Opinião

Desafios federativos da reforma tributária

Autores

  • Hamilton Dias de Souza

    é advogado sócio fundador da Advocacia Dias de Souza e da Dias de Souza Advogados Associados e mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

  • Humberto Ávila

    é fundador do escritório Humberto Ávila Advocacia e professor-titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP.

  • Paulo Rabello de Castro

    é economista foi presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) entre 2016 e 2017 e do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) entre 2017 e 2018.

  • Roque Antônio Carrazza

    é é fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

31 de agosto de 2023, 16h22

"Uma nação que tenta prosperar à base de impostos é como um homem com os pés em um balde, tentando levantar-se puxando a alça"
Winston Churchill

O Senado aprovou seu plano de trabalho para análise da PEC 45/2019 (reforma tributária), com votação prevista para este ano. Esse cronograma contempla a análise dos impactos da proposta sobre diversos setores da economia e a discussão de pontos sensíveis para estados e municípios. E o próprio relator da proposta tem enfatizado que a questão federativa é fundamental e terá de ser objeto de reflexões detidas,nos próximos meses.

Spacca
De fato, há um mal-estar entre governadores e prefeitos com a perda de poder que a reforma tributária poderá ocasionar, ao retirar-lhes a possibilidade de legislar sobre tributação do consumo. Além disso, diferentes pontos que interferem no conteúdo do chamado "pacto federativo" são delegados à lei complementar que se seguirá à PEC 45/2019.

Isso cria um vácuo de respostas quanto a questões que são do legítimo interesse dos entes, por exemplo, o funcionamento do novo sistema, seu tempo de implementação, o papel do "Conselho Federativo", a divisão de responsabilidades entre os entes e o completo silêncio a respeito de um "plano B", caso o novo sistema não entre em operação nas datas previstas ou simplesmente não funcione.

Ademais, há insegurança quanto à própria partilha de receitas entre os entes, que não obedecerá ao volume real e corrente de operações destinadas aos respectivos territórios, mas a arrecadação de cada ente entre 2024 e 2028.

A esse mal-estar se soma o fato de que a própria "tradição institucional" do país é federativa. Afinal, ao menos desde a Primeira República (Constituição de 1891), a descentralização dos poderes estatais é um dos nossos principais mecanismos de organização e contenção das forças políticas. Mesmo nos momentos de estresse, como a pandemia de Covid-19, o que se constatou foi que o funcionamento do Estado brasileiro supõe Federação.

Daí os julgados recentes do Plenário do STF afirmando a autonomia dos estados e municípios e a preservação dos meios necessários ao seu exercício (ACO 3.451, ADI 6.341 e ADPF 672). Tudo a evidenciar que a reforma tributária não pode provocar mudanças que agridam a Federação, como modo de vida política.

Nesse contexto, a tarefa do Senado não se limita a ajustar o texto da PEC. Esta, aliás, praticamente desconstitucionaliza o fato gerador dos tributos sobre o consumo e, com isso, enfraquece as garantias dos contribuintes. Além disso, a pretexto de simplificar o sistema, extingue cinco tributos (ICMS, IPI, ISS, PIS e COFINS), para criar outros quatro (IBS, CBS, Imposto Seletivo e Contribuição Estadual). Isso, sem mencionar os seus enormes desafios federativos, estes últimos objeto das breves considerações a seguir.

Perda de poder dos estados e municípios em matéria de tributação do consumo
Federação envolve divisão de poderes estatais, dentre eles o poder de tributar, fundamental para o desempenho das atividades públicas. Tal poder se define pela competência para legislar sobre o tributo, ou seja, defini-lo em seus aspectos fundamentais. No Brasil, sua distribuição se dá entre União, estados, Distrito Federal e municípios.

Ela difere da simples descentralização administrativa, presente em nações como Itália e Espanha, onde o governo central legisla sobre o tributo, enquanto as unidades periféricas podem arrecadá-lo, fiscalizá-lo e, residualmente, alterar alguns de seus aspectos pontuais (p.ex., alíquotas).

Atualmente, em nosso país, o poder de tributar o consumo está distribuído entre a União, os estados/DF e os municípios, que o fazem por meio do IPI, do PIS e da Cofins, do ICMS e do ISS. Cada um desses tributos é objeto de leis instituidoras próprias dos respectivos entes. E o que a PEC 45/2019 pretende é unificar esses tributos, num sistema dual, composto pela contribuição e pelo imposto sobre bens e serviços (CBS e IBS), a primeira federal, e o segundo,de competência supostamente comum a estados e municípios.

Entretanto, a única competência verdadeiramente atribuída aos estados e municípios sozinhos seria para fixar alíquotas locais, numa margem quase nula para alterações, como se verá. E, exceção feita a ínfimo aspecto, o imposto seria criado pelo Congresso (órgão da União), por lei complementar que iria dispor sobre todos os aspectos fundamentais do tributo. Daí a PEC 45/2019 não prever distribuição de competências, mas descentralização administrativa de tributo, similar à de países não federativos. 

Alguns diriam que, por se tratar de atípica competência "conjunta", o tributo poderia ser instituído por lei complementar, com caráter nacional. Porém, nacional é a lei complementar que estabelece normas gerais que condicionam a competência tributária dos entes federados, os quais a exercem por leis própria.

Quando ela institui tributo (p.ex., empréstimo compulsório), não há caráter nacional. Trata-se apenas de um diploma sujeito a tramitação mais rigorosa. E o tributo daí resultante é de competência do órgão que a editou.

Em suma, é o Congresso que irá definir o IBS em termos de fato gerador, base de cálculo, alíquotas, sujeitos passivos etc. Hoje, tais aspectos são todos tratados pelas leis ordinárias do ICMS e do ISS, dentro da "moldura" estabelecida por leis complementares que não são instituidoras de tributo, mas de normas gerais (CF, artigo 146, III). Assim, o que hoje os estados e os municípios fazem sozinhos passará a ser feito por lei complementar da União.

Por isso, as frações do poder para tributar o consumo que hoje se encontram nas mãos dos estados (ICMS) e municípios (ISS) deixariam de existir, ao serem incorporadas à competência para criar o IBS, nas mãos do Congresso. Mesmo no que se refere a questões administrativas, esses entes teriam poderes de atuação muito limitados, como se verá. Portanto, eles perderão autonomia, numa centralização incompatível com a estrutura federativa, que pode vir a tornar-se meramente simbólica.

A propósito, se aprovada a PEC 45/2019, a União acabaria por concentrar o poder de legislar (decidir) sobre tributos correspondentes a 91,57% da arrecadação nacional (Tesouro Nacional, 2023). Tal centralização pode criar enorme dependência dos estados e municípios ante a União e abrir espaço para uma série de práticas não republicanas, sobretudo em tempos populistas.

A competência para fixar alíquotas locais não garante autonomia aos entes federados
Poder-se-ia argumentar que a autonomia dos estados e municípios seria preservada, porque teriam competência para fixar a alíquota padrão aplicável às operações destinadas aos respectivos territórios. E, de fato, a previsão dessa normatização "suplementar" foi inserida na PEC 45/2019 para transmitir a sensação de que os entes descentralizados poderão tomar alguma decisão "sozinhos", por meio de leis próprias.

No entanto, a alteração de alíquotas locais só seria possível após o Senado estabelecer a alíquota inicial (de referência) do IBS. E, ainda assim, seria de difícil aplicação prática, já que as isenções e reduções seriam taxativas e os eventuais aumentos ou diminuições teriam de ser feitos para todos os itens. Nesse caso, a "margem" para calibração seria restrita, já que majorações na alíquota padrão podem desestimular o consumo local e decréscimos podem comprometer a arrecadação do ente.

Nesse sentido, embora possam existir contextos em que o Estado ou o Município tenham interesse e condições materiais (margens) para majorar ou reduzir suas alíquotas, o universo de situações em que isso será possível é muito menor do que o atual, em que o ente pode diferenciar alíquotas entre produtos e, assim, compensar a redução concedida a certos itens com aumentos para outros, sem perda na arrecadação. Além disso, a fixação de alíquotas é apenas um dos elementos fundamentais do tributo, em relação aos quais os entes atualmente possuem competência legislativa ampla, mas, com a reforma, deixariam de ter.

Em suma, como o ICMS responde por 88% da arrecadação estatual e o ISS por 43% da municipal [1], a possibilidade de alterar alíquotas em termos tão restritos parece insuficiente para garantir autonomia aos estados e municípios. Embora as competências tributárias possam ser remanejadas dentro de uma margem de razoabilidade, eventuais mudanças nesse sentido não podem reduzir a disponibilidade de recursos e de meios para arrecadá-los a ponto de comprometer o funcionamento dos entes descentralizados. Por isso, a PEC 45/2019 esbarra na impossibilidade de amesquinhar sua autonomia financeira (CF, artigo 60, §4º).

Como pontuaram os ministros Ellen Gracie e Gilmar Mendes, federação é e exige "a repartição de competências e de receitas tributárias", como "um dos pilares da autonomia dos entes políticos" (RE 591.033, DJ 17/11/2010). Além disso, "as competências constitucionais esvaziam-se sem as condições materiais para o seu exercício" (ADO 25, DJ 12/8/2017).

Conselho Federativo: dúvidas quanto à sua composição e ao seu funcionamento
Mesmo a chamada "administração" do IBS seria feita por meio de um Conselho Federativo, e não diretamente pelos estados e municípios. Esse órgão teria 54 assentos, ocupados por 27 representantes de cada estado/DF e 27 dos municípios/DF. Destes últimos, 14 seriam eleitos pelo voto de cada município e 13, pelo voto de cada município, mas ponderado pelo número de habitantes.

As deliberações seriam aprovadas se obtivessem a maioria absoluta dos votos dos representantes dos estados e dos municípios, desde que a maioria dos representantes estaduais correspondessem a mais de 60% da população.

Ocorre que, além de cumprir o disposto em lei complementar, o Conselho Federativo teria obrigatoriamente de se alinhar com a União para "harmonizar" os elementos infralegais e entendimentos sobre o IBS e a CBS. Ou seja, embora a União não tenha "assento" no Conselho, ela teria enorme poder externo sobre ele, a ponto de condicionar suas decisões. De fato, como o sistema deve ser "harmonizado", e o IBS e a CBS decorrerão de uma mesma lei complementar, é difícil conceber que eles possam ter regulamentos distintos ou se sujeitem a interpretações conflitantes.

Assim, para evitar uma dominância "externa" sobre o Conselho, melhor seria que a União tivesse assento e voto no órgão, com critérios de "peso" que não lhe permitam impor sua vontade sem o apoio de uma razoável maioria dos representantes de estados e municípios. 

Para tanto, pode-se adotar um modelo deliberativo similar ao do Comitê Gestor do Simples, em que a União detenha 40% dos votos e os estados e municípios, os 60% restantes, exigindo-se maioria de ¾ para aprovação de medidas. Na Índia, aliás, o Conselho do GST (IBS) opera com sucesso desde a sua criação, com votos divididos entra União (33,33%) e estados (66,66%) e maioria de ¾. Em ambos os casos, uma decisão depende do apoio tanto do governo central quanto de uma razoável maioria dos demais membros, para ser aprovada.

O mesmo deveria ser feito no Conselho Federativo do IBS, para "oficializar" e "limitar" a influência da União nas deliberações atinentes ao IBS, de modo a garantir algum equilíbrio de forças entre as esferas federativas e viabilizar que estados e municípios sejam minimamente ouvidos.

A PEC 45/19 teria de ser ratificada pelos estados, para evitar disputas quanto à sua validade
No nosso sistema bicameral, o Senado costuma ser referido como a "Casa dos estados". Porém, na prática, trata-se de uma representação indireta, pois os senadores não são pautados pela vontade política do seu estado e, não raro, votam contra o interesse da sua base. 

A ausência de participação direta dos entes descentralizados no âmbito do Congresso não costuma gerar problemas para além de insatisfações quanto à má qualidade da representação dos estados. Contudo, numa alteração que é especial e que modificará competências impositivas essenciais à sobrevivência dos estados e municípios, essa "imperfeição" pode causar um conflito federativo sem precedentes no país, sobretudo por parte daquele grupo de entes que se sentirá "perdedor" com as mudanças e seus efeitos na transição, que durará até 2078.

Para evitar esses problemas, é recomendável franquear aos estados (pelo menos), em caráter excepcional, uma participação direta na reforma tributária, por meio de um processo de ratificação, no qual ela só seria implementada se aceita pela maioria das assembleias estaduais.

Algo similar foi feito na já referida Índia para a introdução do IBS, fruto da reforma tributária de 2016/2017 (EC 101). De fato, por se tratar de uma redefinição da divisão de poderes impositivos entre os governos federal e estaduais, reconheceu-se que seria fundamental sua ratificação pela maioria das assembleias dos estados[2].

No Brasil, nada impede que uma EC preveja a necessidade de ratificação pelos entes federativos de eventual alteração constitucional que seja de seu especial interesse. Assim, o caso indiano pode ser adotado como inspiração para que se adote um sistema que permita a participação direta dos entes na reforma.

Interesses setoriais e imposto seletivo
P
or fim, o Senado deverá avaliar os impactos da reforma tributária, a fim de evitar aumentos desproporcionais de carga tributária para determinados setores, com os problemas de desigualdade daí decorrentes. Dentre eles, o setor de serviços, com destaque para os prestadores do lucro presumido com mão de obra intensiva e sem grande consumo de itens geradores de créditos, cujos aumentos poderão ser de até 96,4%, segundo a estimativa mais recente, da Fecomercio/SP (2023).

Por fim, mas não menos importante, fato é que, da forma como está redigida a PEC, o Imposto Seletivo não seria um verdadeiro tributo "pigouviano", pois poderia ser livremente modificado pela União, por lei ordinária ou, o que é pior, por medidas provisórias, servindo-lhe como meio para aumentar a carga tributária (já exorbitante), sem maiores dificuldades. Nesse sentido, é preciso que ele seja ajustado, para recair apenas sobre itens taxativamente definidos em lei complementar e que, por sua própria natureza, sejam prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente (itens açucarados, combustíveis fósseis etc.).

Conclusão
Pelo exposto, a PEC 45/2019 demanda ajustes, para evitar que ela comprometa a autonomia dos entes descentralizados ou mesmo "delegue" a redefinição do pacto federativo à lei complementar, com os riscos daí decorrentes. Além disso, o procedimento de aprovação da reforma tributária deve reforçar a legitimidade de seu conteúdo, ao invés de enfraquecê-la.

Por fim, é vital que a carga tributária seja proporcionalmente distribuída entre os setores, segundo as suas características, bem como que o Imposto Seletivo seja ajustado, de modo a não se tornar mais um simples instrumento arrecadatório da União.

 


[1] Cf. Relatório do Deputado Federal João Roma na PEC 45/2019.

[2]Cf. Governo da Índia. GST – concept and status. Relatório oficial do Comitê de Tributos Indiretos e Aduaneiros, da Receita Federal / Ministério das Finanças da Índia. Abril/2019.

Autores

  • é sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

  • é professor de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo; doutor em Direito Tributário pela Universidade de Munique; advogado e parecerista.

  • é economista, foi presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre 2016 e 2017, e do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), entre 2017 e 2018.

  • é é fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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