Milei indica choque econômico doloroso para zerar déficit na Argentina

Novo presidente recebe uma economia cuja inflação passou os 142% em 12 meses, a pobreza está em 40%, há descontrole cambial, falta de reservas em dólares e uma dívida bilionária com o FMI

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Por Carolina Marins
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ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES - “Nenhum governo recebeu uma herança pior do que a que estamos recebendo”, afirmou o novo presidente da Argentina, Javier Milei, durante seu primeiro discurso após ser empossado no Congresso Nacional. Embora repetisse conhecidos jargões de campanha em seu pronunciamento à nação, Milei fez questão de citar a “herança” deixada por seus antecessores Alberto Fernández e Cristina Kirchner.

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De fato, Milei recebe uma economia à beira do colapso, que se manteve durante todo este ano apoiada em medidas de curto prazo, de contenção, lideradas pelo ex-ministro da Economia e candidato derrotado à presidência, Sergio Massa. Seu maior desafio será evitar uma hiperinflação, que jogaria ainda mais argentinos na linha da pobreza.

Atualmente, a Argentina tem uma inflação de 142% nos últimos 12 meses, que pode terminar o ano acima de 160%, segundo projeções. Mais de 40% dos argentinos estão abaixo da linha da pobreza e quase 10% passam fome. A moeda perdeu força e viu seu valor se pulverizar em mais de um tipo de câmbio, sendo o mais utilizado deles - o dólar Blue - batendo quase 1.000 pesos para cada 1 dólar. O Banco Central está com suas reservas de dólares negativas em mais de US$ 12 bilhões, segundo estimativas. E ainda há uma dívida bilionária com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

O presidente recém-empossado da Argentina, Javier Milei, saúda apoiadores ao lado de sua irmã Karina Foto: Rodrigo Abd/AP

O libertário se adianta frente ao futuro sombrio que vem pela frente e é rápido em colocar a culpa no governo de saída. “Em curto prazo, a situação vai piorar, mas depois veremos os frutos dos nossos esforços”, disse. “Não há alternativas ao ajuste e ao choque. Naturalmente, isso terá um impacto negativo no nível de atividade, no emprego, nos salários reais, no número de pobres e de indigentes. Haverá estagflação (uma mistura de estagnação econômica e inflação), mas não é muito diferente dos últimos 12 anos”.

Nesta segunda-feira, 11, Milei já deve entregar seu primeiro pacote de medidas, desenhado com o ministro da Economia, Luis Caputo, que não precisa de respaldo do Congresso. De acordo com Caputo, a intenção é chegar ao “déficit zero”. O plano, porém, ainda não foi oficialmente divulgado, apenas adiantado pela imprensa argentina. Incluiria: proibição do Banco Central de emitir moeda, remoção dos subsídios até abril, fim das obras públicas, liberação dos preços, desvalorização e fixação do dólar, entre outras.

“O principal desafio de Milei é econômico e, nessa primeira semana, o que ele terá de fazer é apresentar seu plano”, afirma Facundo Cruz, analista político e de dados de opinião pública do observatório Pulsar da Universidade de Buenos Aires (UBA). “Hoje não há um plano econômico do governo. A única coisa que sabemos foi revelada pela imprensa.”

Milei já sofreu seu primeiro choque antes da posse, quando teve de retroceder em seu plano econômico mais sensível: a dolarização. Já nas primeiras horas após a vitória, o nome que conduziria essa radical reforma com direito a “explodir” o Banco Central, Emilio Ocampo, caiu. Em nome de melhores alianças, e frente à realidade de transformar discursos de campanha em plano de governo, o libertário cedeu a promessas econômicas mais ortodoxas, ainda que prometa um ajuste forte.

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“Ele diz que teremos de esperar vários meses ou até anos para ver a inflação baixar. O problema é que a sua base eleitoral, de 55%, não vai ter essa paciência. Vimos claramente os exemplos de Gustavo Petro na Colômbia e Gabriel Boric no Chile, onde a lua-de-mel foi curta”. Segundo o cientista político, a base eleitoral do novo presidente deve esperar seis meses ou menos para cobrar resultados, um tempo que o libertário não terá, já que projeta uma melhora só em 24 meses. “Se não acontecer, veremos uma queda em seu apoio popular, terá desaprovação e aumento dos conflitos sociais.”

A sombra da hiperinflação

Todo plano terá de passar por uma solução da inflação. “A Argentina está à beira de uma hiperinflação, que obviamente repercute em um quadro social que é um dos piores que posso me lembrar”, observa o economista pela UBA Fabio Rodríguez. “É uma economia que está entrando em uma recessão que é produto de uma série de desequilíbrios. O único dado positivo era que ainda vinha criando empregos, ainda que seja um emprego de pior qualidade.”

“Eu diria que só encontraríamos um quadro econômico e social de crise semelhante se remontássemos a 2001, em termos de gravidade dos desequilíbrios e dos problemas que Milei vai ter de lidar”, completa o economista.

Em 2001, a Argentina viveu a famosa crise do corralito, em que uma série de medidas de ajustes fizeram a pobreza disparar e o governo impôr limites de acesso ao dinheiro, levando a protestos em massa pelo país e uma crise social que deixou 39 pessoas mortas. A crise provocou a queda do então presidente Fernando De La Rúa, que fugiu da Casa Rosada em um helicóptero, e a Argentina teve cinco presidente em 11 dias.

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“Não estou comparando (2023 com 2001)”, alerta Rodríguez. “Mas, desde então, não temos uma situação econômica assim.”

Enquanto Milei recebe uma inflação de 142% de Alberto Fernández, este recebeu uma taxa de 53% de Mauricio Macri em 2019, que por sua vez recebeu 17% de Cristina Kirchner. “Macri duplica a inflação de Cristina e Alberto mais que triplica a inflação que deixou Macri”, observa o economista. “O que está sobre a mesa é muito delicado, supera as últimas transições presidenciais que tivemos.”

Segundo calculou o jornal argentino Clarín, Fernández assumiu a presidência com o preço da carne, produto essencial na nutrição do argentino, em torno de 200 pesos. Agora, o valor está em 4,5 mil pesos.

É com esta lógica que Milei acusa o kirchnerismo de deliberadamente lhe plantar um futuro inflacionário, em que a taxa poderia chegar a estratosféricos 15.000%. O cálculo que o libertário faz é complexo, e remonta aos anos após a morte de Juan Domingo Perón, onde uma série de ajustes levou a economia argentina até a hiperinflação de 1989. Ele basicamente acusa o governo anterior de emitir tanta moeda que o futuro é de inflações cada vez mais altas, até chegar às dezenas de milhares.

Apoiadores de Javier Milei seguram um cartaz escrito: "Faça a Argentina grande de novo", famoso lema de Donald Trump Foto: LUIS ROBAYO/AFP

Aumento de preços

Apesar da inflação galopante, que consome o poder de compra dos argentinos, especialmente em produtos alimentícios e de vestimenta, muitos preços estavam sob o controle do governo nos últimos meses. Massa tinha um programa chamado “Preços Justos” que limitava o aumento de muitos alimentos. Também há um amplo programa de subsídios à energia e ao transporte, que deve cair em breve.

São essas as mudanças que geram ansiedade no curto prazo, porque serão os primeiros impactos que os argentinos vão sentir da troca de governo. De acordo com o Índice de Preços ao Consumidor, desde 2019, o aumento dos produtos que não tinham controle de preços foi de 866%, enquanto os que sofriam intervenção aumentaram 512%.

O controle de preços já havia caído há algumas semanas e, temerosos, muitos argentinos correram para os supermercados para estocar alimentos. Acostumados com desvalorizações constantes da moeda após períodos eleitorais, muitos aguardam um aumento expressivo dos preços nos próximos dias.

“A depender do que anunciar a equipe econômica, se houver uma desvalorização, veremos um novo reajuste de preços”, alerta Rodríguez. Um aumento que deve seguir uma bola de neve, pois já se sabe que a partir de hoje os preços dos combustíveis - que estavam reprimidos - devem ser liberados, o que promete gerar um aumento em toda a cadeia produtiva.

Câmbios diversos

Outro grande desafio é a existência de vários tipos de câmbios na Argentina. Nessa tentativa de conter os indicadores econômicos, o governo se esforçou para conter artificialmente o valor do peso em relação ao dólar, enquanto criava uma série de câmbios paralelos para diversos tipos de atividade: turismo, shows, exportação e importação, agronegócio, entre outros.

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Atualmente, o principal câmbio em circulação é o dólar blue, que chega a custar o dobro do dólar negociado oficialmente pelo Banco Central. No começo do governo de Fernández e Kirchner, o dólar oficial era negociado a 62 pesos, e agora passa de 400, um aumento de 538%. Já o blue foi de 69,50 para 990, um aumento de 1.324%.

A principal consequência da desorganização do câmbio é uma distorção entre importações e exportações, fazendo com que elas paralisem. Ao exportador não compensa vender sabendo que amanhã o preço pode ser melhor do que hoje, enquanto as importações estão limitadas pela própria falta de dólares no país.

O plano de Milei é fixar o peso do dólar oficial em 600 a 700 pesos o que, segundo Fabio Rodríguez, busca alcançar um limite no teto do dólar paralelo. “Ele busca subir o piso, ou seja, o preço do câmbio oficial, para assim tentar baixar o teto do câmbio livre, porque haveria mais confiança, boa recepção das novas medidas, e assim se começa a diminuir a diferença entre os dois tipos de câmbio. Isso é muito importante porque uma economia que tem uma diferença tão grande entre as duas taxas de câmbio torna seu funcionamento obviamente difícil.”

Pessoam caminham em frente a uma casa de câmbio em Buenos Aires em outubro Foto: Natacha Pisarenko/AP

Falta de dólares

Porém, a correção do câmbio bate em uma outra barreira que tem a Argentina: a falta crônica de dólares. Diversas consultorias estimam que o Banco Central argentino esteja com suas reservas líquidas de dólar no negativo em mais de US$ 12 bilhões, o que tem impactado diretamente as importações. Se for verdadeiro, o valor negativo seria um recorde.

O banco, porém, não revela os valores em reservas líquidas - que é o dinheiro disponível de fato -, mas sim faz o cálculo unindo ativos e passivos.

A falta de dólares, inclusive, foi o maior entrave à grande promessa econômica de Milei de dolarizar a economia argentina. Promessa que já foi deixada em segundo plano no novo governo. Foi por isso que o libertário declarou em seu discurso que “não há dinheiro”. Sua expectativa é de que a Argentina recupere a confiança de investidores e assim passe a receber os dólares que precisa. Mas o desafio é justamente gerar a confiança, principalmente após o vai-e-vem em suas promessas econômicas.

Apoiadores de Javier Milei seguram uma nota de dólar com o rosto do presidente durante sua posse Foto: Gustavo Garello/AP

A dívida com o FMI

Por fim, Milei e seu novo ministro da Economia terão de aprender a lidar com a dívida bilionária que a Argentina contraiu do FMI durante o governo de Mauricio Macri. Este tende a ser um dos maiores desafios, pois passa por sua capacidade de ter governabilidade. O Fundo já avisou que espera de Milei um plano econômico mais claro e com respaldo político. Ele, porém, não costurou alianças suficientes ainda.

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A Argentina fechou um acordo de empréstimo com o FMI em 2018 no valor de US$ 50 bilhões, em razão de dificuldades fiscais. Em março de 2022, o presidente Alberto Fernández fez uma renegociação desse acordo com o fundo, no valor de US$ 45 bilhões. Durante este ano, o fundo liberava desembolsos a conta-gotas, na intenção de não deixar o país quebrar ou declarar moratória da dívida, como já aconteceu no passado. Mas essa era uma medida que só sobreviveria até as eleições e Milei terá de sentar com os credores de Washington para rediscutir o tema.

“O FMI é talvez a negociação mais chave e é o que explica o nome de Caputo dentro do gabinete de Milei”, afirma Facundo Galván, professor de Ciência Política pela UBA. “Sem dúvida, a Argentina está numa situação crítica, alguns dizem que é urgente uma cifra de bilhões, alguns falam de US$ 15 bilhões para resolver a situação de forma imediata. Não é que seja impossível conseguir esse valor ou conseguir garantir a governabilidade em termos financeiros, mas é complicado, é um cenário complexo.”

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