Tempo de Brincar: o universo poético das infâncias

no acervo do Museu Nacional de Belas Artes

Rodando pião, da série "Jogos infantis" (1980) by Ciro FernandesMuseu Nacional de Belas Artes

Pelo olhar da criança, tudo é novidade. Pergunta, investiga, inventa palavras, levanta hipóteses, dá novos usos a objetos do cotidiano, explora, imagina, usa suas múltiplas linguagens e o corpo todo para expressar sua forma de ser e estar no mundo, que acontece essencialmente através do brincar.               

“Um menino nasceu. O mundo tornou a começar.”

Guimarães Rosa

Através da brincadeira e do jogo, a criança constrói, narra, cria gestos, expande sua força criadora. No entanto, a sociedade contemporânea cada vez mais competitiva institucionaliza a criança, transforma-a em consumidora e cerceia seu tempo livre, desvalorizando o brincar. O escritor Eduardo Galeano já dizia que, na infância, somos todos poetas. Depois o mundo se ocupa de apequenar nossa alma.
Tomando como fio condutor tempos, espaços e o mundo lúdico da infância representados no acervo do Museu Nacional de Belas Artes, a presente exposição exibe obras de diferentes épocas e técnicas, de forma a apresentar um pequeno panorama de como os artistas se aproximaram deste universo, que pode ser tão transgressor, lúdico, imaginativo e surpreendente quanto a própria arte.

Jogo de gude, da série "Jogos infantis" (1980) by Ciro FernandesMuseu Nacional de Belas Artes

Quem quer brincar?    -   imaginação e encantamento

Brincar é atividade vital para a infância: aciona a sensibilidade, a imaginação , o conhecimento de si, do outro e do mundo, cria e recria sentidos. O filósofo Walter Benjamin  afirma “pode-se dizer das brincadeiras infantis: onde as crianças brincam existe um segredo enterrado” .

Retrato de Julio Ferrez (1885) by Henri LangerockMuseu Nacional de Belas Artes

Retrato de Luciano Ferrez by Henri LangerockMuseu Nacional de Belas Artes

Estudos indicam que a representação realista ou idealizada da criança ocorreu na arte grega e depois desapareceu da iconografia: as crianças eram representadas como adultos em escala reduzida até o século XII. Segundo Phillippe Ariès, a infância era vista apenas como um período de transição, uma fase sem importância. Aos poucos, vão surgindo figuras de anjos e da infância sagrada, na imagem do Menino Jesus e sua Mãe, até se transformarem em cenas da vida cotidiana. Somente no século XVII a criança começou a ser representada sozinha.

Retrato de Julio Ferrez, Henri Langerock, 1885, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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As crianças retratadas, Julio e Luciano, eram filhos de Marc Ferrez, que foi o principal fotógrafo brasileiro do século XIX. O avô, Zepherin Ferrez e tio-avô Marc Ferrez, eram escultores franceses que integraram a Missão Artística Francesa. Julio e Luciano também se tornaram fotógrafos.

Retrato de Luciano Ferrez by Henri LangerockMuseu Nacional de Belas Artes

O pintor destas obras, Henri Langerock, também era fotógrafo. Muitas vezes ele representava exuberantes florestas como paisagem ao fundo.

Retrato de Julio Ferrez (1885) by Henri LangerockMuseu Nacional de Belas Artes

As crianças começaram a usar um traje que as diferenciavam dos adultos, nas classes altas, somente a partir do século XVI. Os meninos bem pequenos usavam vestidos como as meninas até o fim do século XIX.

As famílias ricas traziam brinquedos da Europa. No fim do século XIX as pequenas indústrias começam a se estabelecer no Brasil e os brinquedos feitos de materiais cada vez mais sofisticados tornam-se objetos de desejo das crianças

A boneca nova, ALFREDO GALVÃO, 1937, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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Muitos brinquedos e brincadeiras têm sua origem em antigos rituais mágicos e religiosos. As bonecas, no antigo Egito, Roma e Grécia, representavam figuras de divindades.

Jogos infantis, Ciro Fernandes, 1983, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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Através da brincadeira, as crianças investigam e recriam o que observam da sociedade em que vivem, mas também criam sua própria cultura, transmitindo-a aos seus pares. Esses saberes infantis carregam as marcas do seu meio, transformadas pela sua criatividade e imaginação.

"Cavalo de pau, [in álbum] Ciro 12 xilogravuras", Ciro Fernandes, 1978, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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Jogo de gude, da série "Jogos infantis", Ciro Fernandes, 1980, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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Gangorra, da série "Jogos infantis", Ciro Fernandes, 1980, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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Pulando carniça, da série "Jogos infantis", Ciro Fernandes, 1980, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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Perna-de-pau, da série "Jogos infantis", Ciro Fernandes, 1980, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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Rodando pião, da série "Jogos infantis" (1980) by Ciro FernandesMuseu Nacional de Belas Artes

O pião entrou na roda, ô pião,
O pião entrou na roda, ô pião,
Roda, pião,
Bambeia, pião.

Sapateia no tijolo, ô pião,
Sapateia no tijolo, ô pião,
Roda, pião,
Bambeia, pião.

Mostrai sua figura, ô pião,
Mostrai sua figura, ô pião,
Roda, pião,
Bambeia, pião.

(música tradicional da infância)

Os jogos e os enigmas (1954) by Maria LeontinaMuseu Nacional de Belas Artes

Essa obra, de Maria Leontina da Costa (1917-1984), faz parte de uma série chamada “Jogos e enigmas”. Vemos que a pintura não tem a intenção de representa a realidade, é uma arte abstrata.

A artista utiliza figuras geométricas básicas, como quadrados, triângulos e retângulos,

sendo que algumas formas parecem transparentes.
Essa pintura também pode nos remeter aos jogos de blocos de construção e de encaixe, tão amados pelas crianças.

Menino de Brodósqui (1951) by Candido PortinariMuseu Nacional de Belas Artes

Nascido numa fazenda de café em Brodósqui, no interior de São Paulo, Candido Portinari (1903-1962) era filho de imigrantes italianos e teve uma infância pobre, recebendo apenas a educação primária. Aos 15 anos mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou na Escola Nacional de Belas Artes. Ganhou o Prêmio de Viagem ao Exterior e foi estudar na Europa. Ao retornar, começa a pintar o Brasil, retratando com cores fortes a dor e a pobreza de sua gente.

Também retratou lembranças da infância como brincadeiras, rodas de ciranda, circo, pipas e outros brinquedos, como o chapéu de jornal desta obra.

Carretéis com frutos (1959) by Iberê CamargoMuseu Nacional de Belas Artes

Segundo o filósofo alemão Walter Benjamin, as crianças se sentem atraídas pelos resíduos do trabalho do adulto (como os da construção, jardinagem, costura, marcenaria, etc.), criando novas relações entre os materiais e construindo para si um pequeno mundo próprio.

O tema dos carretéis é bastante explorado na obra Iberê Camargo. Quando criança, ele brincava com os carretéis que sobravam das costuras de sua mãe, transformando-os em soldadinhos, carrinhos, torres e castelos.

Cirandar (1978) by José da PaixãoMuseu Nacional de Belas Artes


Os sons da infância 

As cantigas e as músicas de roda tradicionais da infância são transmitidas oralmente por várias gerações. São saberes que falam de complexas questões humanas, como o amor, o trabalho, a vida e a morte. Carregam os ritmos, os gestos e a poesia da nossa diversidade cultural e são uma importante via para a criança desenvolver os sentimentos de pertencimento e identidade.

Dança em roda (1906) by Ettore TitoMuseu Nacional de Belas Artes

Brincando de roda (1994) by Ciro FernandesMuseu Nacional de Belas Artes

Estudo de figura de menino tocando tambor, Rodolfo Amoedo, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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As crianças se arriscam, inventam, experimentam movimentos, sons e palavras,

Saudades da favela, Salvador Pujals Sabaté, 1937, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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brincam com os ritmos e as rimas, criando música e poesia através de suas múltiplas linguagens.

Interior by Alexis Marie LahayeMuseu Nacional de Belas Artes


Espaços do brincar

A casa onde vivemos a infância (casa dos pais, dos avós, etc) nos dá as primeiras referências de pertencer, do sentimento de refúgio e acolhimento. Território da intimidade e da introversão, o filósofo e poeta Gaston Bachelard diz que a casa é o nosso primeiro universo, ela abriga nossos devaneios e é onde podemos sonhar em paz. 

Três meninas no jardim, Eliseu Visconti, 1935, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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O brincar livre na natureza é fundamental para a criança. Pela investigação de sua rica materialidade, suas substâncias vivas, suas formas primordiais, texturas, sons, aromas, possibilidades, ela evoca o ser contemplativo e explorador, dando um sentimento de unidade com o mundo.

Depois do banho, Copacabana, Rio de Janeiro, RJ, Heribert Robert Niaud, 1928, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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View of Cavalão Hill, Niterói, RJ (1884) by Johann Georg GrimmMuseu Nacional de Belas Artes

Parque (1956) by Renina KatzMuseu Nacional de Belas Artes

Roda gigante, montanha russa, trem fantasma, algodão doce, maçã do amor, jogos de prendas... O parque de diversões carrega as imagens da infância.
Algumas teorias dizem que teriam se originado na Europa Medieval, em regiões de belos jardins onde havia oferta de entretenimento como jogos de dama e xadrez, apresentações de música e dança e fogos de artifício, permanecendo populares até meados do século XVIII. Após um breve período de declínio, a partir do século XIX, com as mudanças sociais e econômicas ocorridas pela crescente industrialização, a reurbanização de cidades e o surgimento do transporte público, os parques voltaram a fazer sucesso.

Festa (1956) by Lívio AbramoMuseu Nacional de Belas Artes

As festas populares integram as várias gerações em torno de um fazer que vem da tradição. Conhecimentos, valores, repertórios de modos de ser, de ver a vida, de estar em convívio com o outro são transmitidos pelos adultos e reinterpretados pela criança, recriando a cultura.

No interior do Brasil ainda acontecem essas festas que fortalecem os vínculos comunitários. Nesta xilogravura, podemos ver várias referências visuais a estas celebrações, principalmente as festas juninas. Lívio Abramo, autor desta obra, tinha muito interesse em retratar o homem comum.

Bastante popular em Portugal, a festa junina é uma tradição trazida pelos jesuítas durante o processo de colonização, e tem influências dos povos indígenas e africanos. Aspectos da vida rural, do modo de ser caipira, são marcantes na festa porque é essencialmente uma celebração da colheita e da fertilidade.

Projeto de ornamentação [para o] Carnaval de 1954 - Praça Paris, motivo dos postes (1954) by Tomás Santa RosaMuseu Nacional de Belas Artes

Os saberes e práticas relacionados à cultura, tradição e arte do Carnaval são transmitidos de geração em geração. Nos anos 1980, por exemplo, começam a surgir escolas de samba mirins, onde as crianças desfilam no sambódromo tendo seu próprio samba enredo, fantasias, passistas, ala das baianas, etc, valorizando a expressão da identidade e da diversidade brasileiras. A herança cultural é renovada com a criatividade e a imaginação da infância.

Tomás Santa Rosa (1909-1956), autor deste projeto de ornamentação para o Carnaval, é considerado o primeiro cenógrafo moderno brasileiro. Fez a cenografia de importantes espetáculos teatrais, assumindo em 1952 a coordenação das montagens do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Atuou também, entre outras atividades, como pintor, professor, figurinista e editor.

Igreja de Sant'Ana em dia de festa [Rio de Janeiro, RJ] (1851) by José dos Reis CarvalhoMuseu Nacional de Belas Artes

A igreja de Sant'Ana, construída em 1735, deu nome ao Campo de Santana, que ficava praticamente em frente. Lá ocorriam as festas religiosas mais concorridas da cidade do Rio de Janeiro.
Esta aquarela, de José Reis de Carvalho (discípulo de Debret), representa a Festa do Divino Espírito Santo, uma das celebrações mais importantes do catolicismo brasileiro no século XIX.
A igreja foi demolida em 1857, quando se construiu a estação da Estrada de Ferro D. Pedro II.

Dias antes da festa, era erguido um mastro com a pomba no topo (símbolo do Espírito Santo), que serviria de “pau-de-sebo” nos dias da celebração. Um cortejo saía às ruas, formado por foliões (meninos e rapazes), tocando instrumentos, cantando e dançando, chamando o povo para os festejos e pedindo donativos. Carregavam a Bandeira do Divino, com a representação de uma pomba, para ser reverenciada e beijada pela população.

Palanque armado para a Festa do Divino. Uma pessoa, quase sempre uma criança, era coroada imperador do Divino, representando o anúncio de um novo tempo.

Missas, novenas e procissões aconteciam ao lado de animados leilões, danças, barracas de comidas, bebidas e jogos, peças teatrais, apresentação de saltimbancos, mágicos, banda de música, batuques, terminando com muitos fogos de artifício.

Cena de circo by Marc ChagallMuseu Nacional de Belas Artes

E o circo chegou!

onde a magia acontece                                                                                                                                                                                                      

É no século XIX que se têm os primeiros registros de apresentações de famílias circenses europeias no Brasil. Esta manifestação artística tinha a particularidade de, sem perder a tradição de transmissão oral de seus saberes, convidar artistas locais de dança, música ou do teatro para se apresentarem. Não raro esses artistas acabavam acompanhando o circo quando ele ia embora, mas mesmo se isso não acontecesse, os artistas circences iam incorporando novos ritmos, instrumentos musicais e estilos de dança, difundindo-os por onde passassem.

Anúncio de circo by Raimundo CelaMuseu Nacional de Belas Artes

A chegada de um circo em uma localidade provocava alvoroço na população – a rotina era quebrada pelo convite a um mundo novo, mágico, exótico, encantador e inesquecível.

A estreia do espetáculo era anunciada pelas ruas da cidade: o palhaço ia à frente puxando um coro de crianças, que ganhavam balas e ingressos.

O circo vem aí, [in série] o circo (1967) by Zorávia BettiolMuseu Nacional de Belas Artes

Hoje tem espetáculo? Tem, sim sinhô. Hoje tem marmelada? Tem, sim sinhô. Hoje tem goiabada? Tem, sim sinhô. É de noite, é de dia? É sim sinhô. O palhaço o que é? É ladrão de mulher!
Dizem os circenses: "Enquanto houver uma criança no mundo, o circo viverá!"

O circo (1944) by DjaniraMuseu Nacional de Belas Artes

Em meio ao sentimento nacionalista e aos estudos no campo do folclore e da educação, no contexto das décadas de 1930/1940, os artistas e intelectuais paulistas viram no circo a base da cultura popular brasileira, um resgate de nossas “autênticas raízes”. Assim, a magia do circo foi frequentemente representada na arte em imagens, verso e prosa, criando um elo entre a arte erudita e a cultura popular.

Acrobatas, malabaristas, mágicos, trapezistas, equilibristas, engolidores de fogo, domadores de feras, atiradores de faca – o espetáculo circence afirma a possibilidade humana de superar seus próprios limites. Mesmo se o artista falhar, receberá aplausos porque ousou tentar.

Suspense e temor ao assistir os números perigosos são superados, logo em seguida, pela descontração proporcionada pelos palhaços. O picadeiro é o lugar da liberdade no imaginário do público: onde tudo pode acontecer.

Circo IV by José de FreitasMuseu Nacional de Belas Artes

"Certamente não pode caber em mim um circo inteiro (...) É muita coisa para um só coração lembrar".

Ferreira Gullar

Cena de circo, Marc Chagall, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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As acrobacias envolvendo cavalos remetem à origem do circo moderno. O suboficial da cavalaria inglesa, Philip Astley (1742-1814), inaugura em 1770 um recinto fechado, com uma arena de 13 metros de circunferência, onde se poderiam apresentar espetáculos que já ocorriam ao ar livre, de homens em pé sobre os dorsos dos cavalos, mediante cobrança de ingressos. Exímios cavaleiros reformados do Exército da Inglaterra passaram a demonstrar suas habilidades para um público aristocrata. Daí a expressão “circo de cavalinhos”.

Bicicleta, Fernando Barata, 1986, From the collection of: Museu Nacional de Belas Artes
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Gente de circo (1952) by HILDA CAMPOFIORITOMuseu Nacional de Belas Artes

O palhaço é o porta-voz do circo, figura inocente e frágil, símbolo do poder dos mais fracos. Expondo de forma cômica as contradições sociais, os limites do existir, subverte os espaços e convida ao riso. Assim como as crianças, o palhaço nos apresenta o mundo sob inusitados pontos de vista.
O Dia do Circo no Brasil é comemorado em 27 de março, data de nascimento do Palhaço Piolin, interpretado pelo artista Abelardo Pinto (1897-1973). Ele obteve o reconhecimento dos intelectuais modernistas que viram nele o autêntico artista popular, elegendo-o como “o maior palhaço do Brasil”.

Menino dançando by Giuseppe RendaMuseu Nacional de Belas Artes

E depois? Morreram as vacas e ficaram os bois...
Entrou por uma porta e saiu pela outra, quem quiser que conte outra!

Credits: Story

Tempo de Brincar - o universo poético das infâncias no acervo do Museu Nacional de Belas Artes

Curadoria
Simone Bibian

Idealizada especialmente para o Google Arts & Culture, 2020



Grupo de Trabalho: Cláudia Ribeiro, Cláudia Rocha e Simone Bibian



Credits: All media
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