Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Inteligência Artificial desafia os limites da sucessão

PUBLICIDADE

Por Luiz Kignel e Julia Prado Affonso Moreira
Atualização:
Luiz Kignel e Julia Prado Affonso Moreira. Fotos: Divulgação  

Uma criativa propaganda veiculada nos últimos dias valendo-se de alta tecnologia colocou lado a lado mãe falecida e filha viva dirigindo automóveis e cantarolando em perfeita sintonia um sucesso musical. Para os saudosistas um momento inimaginável de apreciar um ídolo; para os mais novos uma peça comercial com inteligência artificial. Originalidade à parte, fato é que se abriu uma inesperada batalha jurídica no CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária para determinar se trazer personagens falecidos de forma tão presencial não pode estar levando a erro o público que está assistindo.

PUBLICIDADE

Longe do mérito da discussão trazida ao crivo do CONAR, surge um debate que não pode passar despercebido. Afinal, quem é o titular deste acervo intangível da imagem de uma pessoa falecida? A quem será atribuído o direito de trazer vida digital ao falecido?

Determina o artigo 1784 do Código Civil que "aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários", o que vale dizer que desde o falecimento os sucessores legais (herdeiros necessários pela parcela legítima e legatários por testamento, se houver) receberão o acervo patrimonial deixado pelo falecido. Essa universalidade de bens e direitos, mas também, de obrigações, é o que compõe o Espólio, figura que surge do óbito até a partilha pela via extrajudicial ou judicial. Ainda que um processo de inventário e partilha possa se alongar no tempo, os sucessores passam a deter direitos sobre este patrimônio formado classicamente por bens imóveis, participações societárias, ativos financeiros, objetos de arte, automóveis, títulos de clube, enfim, bens materiais de toda e qualquer espécie, inclusive os direitos de imagem, por vezes extremamente valiosos quando se trata da sucessão de artistas, escritores, enfim, de quem viveu e construiu carreira lastreado na sua produção ou imagem próprias.

A Inteligência Artificial desponta para trazer um novo tipo de bem totalmente imaterial que passará a ser objeto de desejo dos sucessores. Não se trata mais daquela fotografia única ou daquela filmagem singular e ímpar, captada em um momento sem igual que perpetuará a pessoa falecida. O que se traz ao debate jurídico é a possibilidade de verdadeiro renascimento do falecido, que, de maneira praticamente perfeita, é recriado passando a conviver com o mundo presente pós seu falecimento. Seus sucessores não disputarão o que o falecido já fez ou falou, mas sim o que ainda poderá ser feito ou dito por ele.

Este dilema nos parece abrir um capítulo totalmente novo no Direito Sucessório. Não se trata de partilhar o passado, mas de compartilhar o futuro de alguém que não está mais conosco e que ainda assim poderá falar, criar e interagir por meio da Inteligência Artificial, fazendo-o com a mesma destreza e aptidão da figura original ou, contrariamente, desconstruindo o que já estava feito.

Publicidade

A princípio, cumpriria questionar se o uso de Inteligência Artificial que implique na utilização de imagem da pessoa falecida, um dos muitos direitos de personalidade, por si só, importaria em violação.

São direitos da personalidade, tutelados no Código Civil e na Constituição Federal, o direito à vida, incluindo-se a integridade moral, física e psíquica, à imagem, ao nome, e à privacidade, liberdade, intimidade, à honra. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, X, tutela a proteção da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, garantindo indenização por eventual dano moral ou material decorrente de sua violação. Daí se infere que, em que pese o direito à imagem tenha cunho extrapatrimonial, existe uma possível exploração econômica intrínseca a ele, permitida, porquanto se possa ceder e licenciar tais direitos. E quem seriam os titulares dessa exploração? Notadamente, os herdeiros legais do falecido ou a quem este acervo tenha sido atribuído em eventual testamento.

O próprio Código Civil, em seus artigos 12 e 20, garante a defesa da inviolabilidade dos direitos de personalidade dos falecidos, e a atribui ao cônjuge sobrevivente - leia-se aqui também ao companheiro - e aos parentes pois, ainda que a morte tenha colocado fim à existência natural da pessoa, o seu legado, seja em bens, direitos, produção intelectual, obrigações etc., é transmissível aos herdeiros, e a estes cumprirá zelar pela proteção do nome, da boa fama, da memória daquele que já se foi. Inclusive, poderão eles buscar sanções penais e cíveis, mediante pedido de indenização e imposição de multa se não cessar a violação e/ou lesão àqueles direitos. Da mesma forma, intitulados do acervo hereditário, poderão beneficiar-se das novas tecnologias, uma vez que tais limites não estão, ainda, bem estabelecidos pela legislação em vigor.

A criação post mortem abre portas para um caminho ainda desconhecido e sem volta que brevemente deverá ser enfrentado pelos nossos Tribunais. Sucessores não mais disputando os direitos do que foi feito em vida, mas sim do que poderá ser criado mesmo na ausência do ator principal.

*Luiz Kignel e Julia Prado Affonso Moreira, sócios da área de Direito de Família e Sucessões do PLKC Advogados

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.